Emicida participou no fim do ano
passado de um “documentário” produzido pela Nike. Na verdade, se trata
de uma campanha publicitária para divulgar um tênis da marca. Não
escrevo este artigo para dizer que o rapper se vendeu e blablablá, mas
para provocar uma reflexão acerca do seu empreendimento. Não afirmo que
se vendeu porque não acho que esteja presente em sua obra uma visão que
vá contra a ideia de inserção na campanha. E, se parece estar, talvez
seja uma reflexão mais elaborada sobre as críticas do rapper do que ele
mesmo conseguiu fazer, entrando em questões essenciais que podem não ter
sido levantadas por ele ao fazer tais críticas. O que não o torna
contraditório, mas, talvez... ingênuo. Ou talvez não.
Confesso que me senti incomodado em ver a
tal propaganda. O que pude pensar foi algo como “esses filhos da puta
(burgueses, empresários, detentores do poder) conseguem se apropriar de
tudo mesmo, para garantir o sucesso de seus negócios (lucro). Mais uma
vez, conseguiram”. Não que não haja outros exemplos no próprio Rap, como
D2 que, hoje. faz apologia à riqueza após ter tido uma carreira de
destaque no Planet Hemp cantando músicas com letras que se opunham a
opressão _parto do princípio de que, para ser rico, é preciso oprimir
indivíduos, para que produzam o que você não consegue produzir, mas
deseja acumular. Quando falo que os burgueses conseguiram, não me refiro
apenas a contratar seus modelos, mas disseminar suas ideias entre as
pessoas, convencê-las. Também não creio que seja tão consciente,
minuciosa, essa disseminação.
Com a minha crítica do rap “ter sido
dominado” pelos empreendedores, não estou choramingando que não possam
fazer isto por ser uma linguagem que não os pertence... Vejo as
expressões artísticas sem fronteiras, não são exclusividade de um nicho
_não posso usar tal estilo de roupa porque pertence a um grupo x ou y,
ou não posso criar tal tipo de música porque pertence a tal comunidade, e
estou excluso disto_ simplesmente porque este nicho só as sustenta, não
as cria. Quem as cria é um ou outro, dentro deste grupo, que tem
sensibilidade para isto. Por que ter o direito à exclusividade de algo
que nem mesmo fui eu quem criou? Mas grande parte da sociedade insiste
em segregar tais expressões. O problema que percebo nesta “dominação” do
RAP é que ingenuidade de algumas pessoas, que parecem esboçar certa
preocupação com o rumo da humanidade, chega ao ponto de colaborarem para
manter um sistema opressor; que abram mão de seus ideais na hora em que
o poder bate em sua porta; ou, na pior das hipóteses, considerar que
elas são cínicas e, por isto, ajudam a te convencer, através de
mensagens que parecem libertárias, a mover a engrenagem que mantém este
sistema.
Mas voltando à propaganda... ops,
documentário! Nela aparecem, além do Emicida, Raulzito, Pixote, Damiris,
Toddy e MC Xará _artistas e esportistas que desconheço o trabalho, mas
creio terem em comum com o rapper, pela proposta do vídeo, o fato de
terem saído do gueto. A ideia que captei no documentário foi a de que se
você se esforçar, correr atrás dos seus sonhos, trabalhar para isto,
você conseguirá concretizá-los. Bom, em nenhum momento, a propaganda
deixa isto claro, que você vai “conseguir” caso se esforce, mas faz
parecer que com persistência é fácil. Inclusive o nome do vídeo reforça
esta ideia: É POSSÍVEL.
Entendo esta ideia de que você pode
“vencer na vida” como perversa, pois faz com que as pessoas tenham a
ilusão de que há espaço para todos ascenderem economicamente, de modo
significante, o que não é verdade. Não há como nós todos, nem mesmo a
maioria, enriquecermos a ponto de nos tornarmos "patrão", pois para isto
teríamos que dividir a riqueza, que deixaria de ser riqueza; e, se
fosse possível todo mundo ser abastado, quem produziria as coisas que
garantem os luxos e privilégios? A ideia do vídeo serve para conformar
as pessoas a não questionarem a riqueza de outros, pois um dia elas
podem se tornar ricas também, garantindo com isto a manutenção do poder
econômico como é. Outro problema é que elas, iludidas com a
possibilidade de ascensão, têm maior motivação para trabalhar e produzir
mais. O que, no final das contas, equacionando o trabalho de todas e o
quanto algumas ascenderam, não compensa o investimento, mas faz com que
seus patrões, sim, lucrem mais. Isto acontece porque as pessoas pensam
individualmente, não em coletivo. É como jogar na loteria: o risco de
ficar rico não vale o investimento, pensando no número de jogadores e
quanto eles gastam; vale mesmo, no fim das contas, é para o empreendedor
que vende o bilhete.
Intrínseca ao desejo de ascensão, que
propagandas como esta reforçam, está a idéia de que ser livre é ocupar o
papel do dominador, do que explora, dificultando algum movimento num
sentido de libertação dos oprimidos. Ao pensarmos na liberdade como a
dominação, não reconhecemos outros oprimidos como iguais, como
companheiros, mas como aqueles que temos que trabalhar para dominar, o
que impossibilita qualquer acordo, motim, revolta, contando com uma ação
conjuta a eles.
Enfim, esta é a ideologia que acho que o
vídeo carrega, junto com ela vem também de brinde um tênis da Nike, ou
melhor: o desejo de ter aquele tênis. Por quê?! Porque é legal, a Nike é
parceira de gente legal e descolada. E tudo isto com a ajuda do RAP,
aliás, do RAP não, de um rapper. Como diria o próprio Emicida, em uma de
suas letras, “Se o rapper se entregar, a favela vai ter o quê?”.
Acredito que não é do desejo de possuir um “Nike” o que ela precisa.
Fonte: Por Rafael Barros no Overmundo
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